segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Pecador



"Eu não consigo me controlar,
tenho um demônio na carne, no corpo.
Sonho acordada na escuridão da minha cela,
utilizo os dedos pra provocar sensações proibidas.
Eu não sei explicar como isso acontece,
eu sinto um formigamento percorrer o meu corpo,
algo se desprende
e caminha em direção a você"

Você entra comigo pela porta da sala,
me vê sacar os sapatos
e, enquanto me ajeito ao sofá com a cerveja,
se interpõe à TV e me assiste.
As imagens são luzes que contornam seu corpo e me divertem,
os sons... não há sons, há saliva e fome.
Me segue em direção a cozinha,
enfia a colher na minha sopa.
Como, com você passando os dedos por meus lábios, contornando meu nariz,
senta-se em meu colo, me abraça, acomoda a cabeça sobre meu ombro,
alisa minha barba,
mirando o relógio, entreouve os assuntos rotineiros,
puxa com força meu cabelo, quer me arrancar dali,
não sossega até rumarmos ao banheiro.
Sob a água morna para quente, encosta a boca em meu ouvido
e ouço de amores improváveis.
Cola-se ao box e oferece-me as costas,
minhas mãos descem pelo vidro liso.
A vejo refletida nas gotas que aceleram para o chão.
Junto a cabeça, ensaboa meus pensamentos sujos.
Esfrega os restos de dia que ainda sobreviviam em minhas costas.
Apoiado à parede meu corpo acompanha seus movimentos compassados,
não encontro suas pernas entre o vapor e a espuma.
Sento no piso molhado,
tudo vai pelo ralo.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Não Matarás



Tudo era vermelho, meu sangue embotava-me a visão e o dele respingava na parede a cada golpe. Estávamos exaustos e não havia mais a possibilidade de um vencedor na disputa. Disputa!?! O motivo já havia sido engolido, misturado ao caldo grosso, quente e enferrujado que me enchia a boca e escorria na camisa. Ele repetia a mesma frase sempre que me atacava, eu apenas socava, sem força e sem direção ao perceber um movimento mais próximo. Estávamos cercados por fantasmas que assombrávamos com nossos gemidos, os gestos já automatizados faziam a cabeça e o tronco balançarem num pêndulo bêbado de um boxeador veterano. Nada mais importava e decidi acabar com aquilo de uma vez, baixei a guarda, fechei os olhos e esperei o golpe que não tardou, senti os ossos de seu punho esmagando meu nariz, o fluído que me entupia as vias impelido com força garganta abaixo, a cabeça arremessada chocou-se contra a parede, cai sobre a mesa de canto e permaneci ali imóvel até a manhã seguinte. Levantei com muita dificuldade e muitas dores, ele estava desmaiado sobre o tapete da sala, caminhei até a gaveta da cômoda e, segurando firme com as duas mãos, enfie seguidas vezes a tesoura longa e pontuda em sua garganta, dessa vez não conseguiu repetir frase alguma, aguardei até que o sangue passasse a escorrer mais lentamente, fui até a cozinha, fiz o café e pensei: “forte e hoje só para um”.

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Elevador


Mais dia menos dia entraremos juntos no elevador, a estatística assim o diz.
Haverá testemunhas, ou não.
Perceberão um "certo clima", ou não.
Nos cumprimentaremos com indiferença.
Serão longos minutos e você descerá andando rápido, sem olhar para traz.
Nenhuma ingênua dúvida se acercará de suas certezas.
Nenhum intruso pensamento riscará sua mente.
Na bolsa, a chave do carro será localizada rapidamente, no local preestabelecido.
No rádio, a estação de sempre tocará um hit novo.
Tudo continuará exatamente como nunca foi.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Domini-bus


Ou-nibus: diletante ser que hora passa, hora não passa
Cão-nibus: aquele que morde as calçadas, mijando as poças nos pés distraídos
Chão-nibus: senhor das curvas agressivas, freadas desnecessárias
Féu-nibus: de amargas horas, visceral contrariedade
Pau-nibus: resvalado, por caras "de paisagem", em bundas, bolsas e coxas
Léu-nibus: do acostamento da vaidade à carência da vontade, ausentado
Mel-nibus: rastro delicado de silêncio entremeando-lhe energia
Seu-nibus: força sugadora de atenção, provedora de alegria
Céu-nibus: pedaço azul, ponte, vastidão, novo horizonte
Véu-nibus: bilhete unívoco, inequívoco caminho
Prole-bus: renovada essência, multiplicada existência
Duro-bus: corta, no vermelho, a Av. Amor
Credi-bus: financiada subsistência, postergada decadência
Pax-nibus: calada dúvida, solidária dívida
Réu-nibus: penalizada rota, iminente bancarrota
INRI-bus: ponto final.

terça-feira, 14 de abril de 2015

Passeio noturno – Parte II



O ritual foi sendo seguido, noite após noite, mal conseguia jantar, o que, aliás, foi muito bom, perdi até alguns quilinhos! Eram homens ou mulheres, novos ou velhos que cumpriam com exatidão seu papel, verdadeiros artistas do improviso, uns gritavam, uns jogavam as sacolas, bolsas ou pastas para o ar, clamavam por um Deus omisso que, provavelmente também estava assistindo a novela.
Lembro a primeira vez que houve repercussão de um caso... causou-me uma mistura de satisfação, orgulho e uma pitada de medo... entrevistaram vizinhos, transeuntes, guardas-noturnos, ninguém havia visto nada, ninguém sabia de nada, inocentes! Achei prudente, naquele momento, parar por alguns dias, usei essa reclusão para aperfeiçoar meu "método": Passei a escolher as ruas de antemão, limitei a ação a apenas um dia na semana, utilizava os outros para visitar as ruas candidatas, analisar o fluxo de pessoas e até escolher, na rua, os melhores pontos para desferir o ataque, sem árvores, sem buracos e sem possibilidade de fuga para a vítima. Parecia mais emocionante, essa procura, essa análise, esse estudo... eram "preliminares", eu ia me sentindo cada dia mais excitado até o clímax, na sexta-feira, puro êxtase!
Com o tempo fui percebendo que certos bairros davam muito mais publicidade que outros, atropelar no Leblon, por exemplo, era impraticável, tamanha a barulheira que os jornais faziam, ai outra coisa que passei a fazer, monitorar as notícias na imprensa, todo sábado comprava 2 ou 3 jornais para procurar alguma referência à ação da noite anterior, mas normalmente não havia nada, aquelas pequenas ocorrências nada significavam em nosso denso caldo criminal, nada sobressaía à lamentável barbárie dessa cidade.
Tudo caminhou tranquilamente por um bom tempo até que um dia fiquei estarrecido com a notícia que abria o caderno "Bairros" no Globo: "Atropelamento e Fuga" estampava o caderno com grande destaque, para abaixo esclarecer: "O Selvagem do Asfalto fez nova vítima ontem na Vila Mimosa" assim começava a notícia, era eu, certamente, achei simpático: "Selvagem do Asfalto", me senti envaidecido, continuei lendo... não sei porque gastam tantas linhas falando sobre a vítima, como se isso interessasse a alguém, foram 3 parágrafos só de baboseira, mas, depois disso, viria a parte que mudou tudo: "foi a terceira vítima do assassino, só nesta semana", como terceira vítima?!? Do que estavam falando!!! Voltei correndo aos jornaleiros da redondeza, tentando resgatar algum jornal dos dias anteriores, não encontrei. Rapidamente deduzi que só poderia se tratar de algum imitador. Em um primeiro momento, achei ótimo, seria um laranja para assumir meus deslizes. Mas depois da leitura da matéria essa ideia foi me irritando, era um completo amador, já sabiam até a marca de seu carro, era questão de dias e estaria preso... mas as semanas passavam e nada de sua prisão, os repórteres policiais sequer conseguiam notar as enormes diferenças entre nós e colocavam tudo na mesma cesta, isso estava me atormentando e não teve jeito, tive que tomar uma atitude, reli todas as notícias publicadas sobre ele, mas naquele momento todo atropelamento era tratado como se fosse obra nossa, as notícias eram desencontradas, um dia o carro era um Opala preto, no outro um Landau, depois já era cinza, ninguém sabia de nada, prá não dizer que era tudo fajutagem para vender jornal, perdia horas lendo e relendo, tentando encontrar algo, ia às ruas onde ele havia agido, tentava estabelecer uma área de concentração para suas investidas, ele preferia agir mais tarde, depois das 23:00 isso eu sabia e passei a estender meus passeios até depois desse horário, eu privilegiava as ruas onde houvesse sido noticiada alguma ocorrência, tentava identificar exatamente os locais, descia do carro tirava fotos, procurava por pistas, cheguei a localizar uma caneta quebrada, provavelmente da vítima! Não conseguia me concentrar em mais nada que não fosse desmascarar o farsante mas não havia como. fui perdendo o gosto por meus passeios, parei de ler os jornais, vendi meu carro.
Entrei para uma escola de tiro.